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quinta-feira, 18 de outubro de 2012

A Janela e Uma Xícara de Café


           Da janela do meu quarto vejo passar pelo céu, quase todas as noites, um avião. Resolvi acreditar que era mesmo um avião depois da terceira noite que o vi. Logo depois de ter confirmado o fato de ele não ser uma nave extraterrestre, nem uma estrela cadente com cauda verde fluorescente, e, depois de constatar que o sonido exalado por ele não era nenhuma onda hipnotizante ou infravermelho cancerígeno, imaginei um desenho.

É, um desenho desses feitos por criança com giz de cera no pré. O desenho era um risco vermelho no céu que, beirando à similaridade com as pinceladas do impressionismo de Van Gogh, denotava, num traço, o caminho feito pela aeronave. Ele se perdia de vista pra direita e pra esquerda, e, toda noite, parecia engrossar seu calibre. Era um rabisco “encarcado” no céu, que se pautava entre as estrelas como uma linha do tempo sem pontuações relevantes para serem citadas.

Fui mais longe. No momento em que o avião passa pelo meu campo visual, é possível que, lá dentro, haja alguém lendo um livro pelo qual eu me interessaria, uma possível aeromoça servindo bebidas amargas o suficiente para amansar as expectativas da chegada, ou para consolar a dor da partida. Talvez haja um piloto enjoado de reforçar a linha que traça o caminho feito pelo avião todos os dias, ou uma senhora sorridente carregada de presentes trazidos de longe pra entregar aos netos que não vê faz tempo.

Talvez haja alguém com fome da comida que esfriou em cima da minha escrivaninha. Talvez lá tenha a comida que eu gostaria de comer a esta hora da noite. Pode ser que um celular ligado derrube este avião, ou que uma moça desconhecida encoste a cabeça no ombro de um rapaz “pseudo-intelectual” de óculos, barba e camisa social. É que, nesse desenho que enxergo, os fatos e as observações são côngruas demais pra serem grifadas.

Faz parecer que a vida, é maciça. Que embora o rabisco seja o mesmo, em suas duas pontas (a chegada e a partida), ele se ramifica feito capilares sanguíneos que ligar-se-ão a outras retas que cravam histórias lineares entre si. Retas que mudam de cor, textura, que são curvilíneas ou tracejadas, mas que, hora ou outra, unem-se ou separam-se pelo mesmo motivo: o acaso.

Da janela do meu quarto vejo passar pelo céu, quase todas as noites, um avião. A janela, esse avião e o café frio que me esqueci de tomar enquanto dialogava com minha câimbra mental, me ensinaram que esse embaraço de linhas, condutas e vidas, é uma coisa só. É perspectiva.

Uma espera, ainda que ultrajada de comodismo ou convicção. Quanto tempo até o avião pousar? Até o taxi chegar? Até eu reencontrar um amor ou até essa espinha grotesca sumir do meu rosto? Quanto tempo até o Natal ou até a viagem que programamos para o meio do ano? Quanto tempo até a morte chegar e me livrar de caminhar por “lugares nenhum”? Quanto tempo até você? Quanto tempo até nós?

Maciça; prospecta; ingenuamente programada: vida.

Um avião, uma carroça ou as águas de março... Tudo desemboca num mesmo mar: o fim da linha.


Sarah Nadim de Lazari


Medo da Chuva

Há um tempo estive esperando a estreia do filme do Raul Seixas (“O Início, o Fim, e o Meio”) no cinema da cidade onde moro. Assim que tive tempo (ou assim que consegui roubar um tempo de mim), subi na moto, sob nuvens acinzentadas e ameaçando desaguar, e comprei um ingresso pro filme.

          Aflição era o sentimento mais predominante ali, na fila pra pipoca. E se
eu quebrasse a cara e meus heróis, de fato, morressem de overdose? E se o longa fosse a banalização comercial de uma história que eu idealizo como utopia ideológica e nostalgia de uma época que eu não pude viver? E se matassem o Raulzito?

          O Início, de repente, era o medo.

          Vi um cara com a camiseta do Raul, barba por fazer, calça rasgada e All Star surrado entrando na sala. Ultrajado de convicções.

          Eu queria ter aquela cara que esbanja personalidade. Não havia dúvidas de quais eram seus ídolos ou de quais eram as outras estampas em suas outras camisetas.

          Eu o invejei. Sem ultraje e com brincos dourados; ouro de tolo.

          Éramos eu e mais quatro pessoas naquela sala. Uma delas era um velho cuja jaqueta de couro da Harley Davidson denotava muitos quilômetros de sabedoria; muita música na bagagem. Sentou-se na primeira fileira e saiu com os olhos vermelhos dalí. Olhos de quem viveu muito do que tinha assistido.

          Eu o invejei. Com 19 anos e uma moto miúda; um motor de quem não vai a lugar nenhum.

          O Fim, de repente, era a inveja.

          O filme me fez esboçar algumas lágrimas (escondidas) 4 ou 5 vezes. Entre a vida pessoal e a profissional do Raulzito, havia o Raul. Um gênio. Um cara que não queria que sua música fosse acadêmica ou glamorosa. Ele queria ser entendido por todo mundo. Usou de simplicidade pra falar de coisa séria. E seriedade pra compor um mundo de sentimentos.

          E as drogas? Não consegui anexar uma opinião concreta. E se ela não tivesse experimentado todas elas, seria o mesmo Raul? Se ele tivesse permanecido nesta dimensão, será que conseguiria ter observado tudo com tanta objetividade? E se ele não tivesse sido essa metamorfose ambulante, seria ainda o maluco beleza que conceituou tantas vidas?

         Saí do cinema depois do final dos créditos. Assimilava tudo o que tinha visto. Digeria e saboreava sensações antitéticas.

         Só percebi que estava chovendo torrencialmente quando a moça que cobrou o ticket do estacionamento me perguntou se eu estava de moto e sorriu quando eu respondi que sim. Muito simpática.
Peguei minhas chaves, fechei a jaqueta, e fui. Sabia que o mais puro gosto do mel era apenas um defeito do fel.

         E meu Meio, de repente, era a esperança.

Sarah Nadim de Lazari

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Vista-se


Sempre que entro n’algum site de relacionamento, me pego indagando à respeito do fato de as pessoas despirem-se diante do mundo. Então, esbarrei, dia desses, com o termo “striptease espiritual público”, comentado pelo sociólogo  Zygmunt Bauman.

 À partir daí, a bola de neve mental desencadeou num raciocínio cujo pontapé inicial é a comercialização da moral humana.

Foi fácil fazer uma analogia entre a austeridade versus o consumismo. Pense bem: nós vivemos um acidente histórico, cuja inovação não é a tecnologia fundamentada, nem o avanço eletrônico, mas a orgia consumista! E digo orgia, porque passou de necessidade, a prazer/desprazer no Ter/ Possuir. E por que isso?

 Relevância.

 As pessoas querem ser notadas. Elas querem fazer parte de algo. Querem comentários à respeito delas e aceitação daquilo que elas são/pensam/vestem/ingerem.

 Num lapso de desprendimento do senso comum, fica clara a observação de que hoje, não há utopia.

 Para onde, exatamente, estamos indo?

Que eu  me lembre, traçávamos, até bem pouco tempo atrás, um caminho para esse “desenvolvimento” que presenciamos, sem nos indagar a repeito dos alicerces de um futuro posterior ao  que galgamos. Fizemos o gol, corremos pro abraço, mas nos esquecemos que a partida continua depois da mudança no placar.

 Um termo bastante usado antigamente era o “Interregno”, que denotava o período que um império qualquer ficava sem Rei, ou dinastia. Nesse período, a população subordinada a tais comandos, ficava perdida. Estagnada. E é essa a caracterização dada a nosso tempo. Não mais pela próxima aristocracia, mas ainda uma espera; o “Stand By”da contemporaneidade.

 Compartilhar dos mesmos interesses ou sentimentos é uma procura incessante por uma utopia comum. A vontade de que destino traga a novidade que todos precisam. Não sabem. Mas precisam.

 Essa confusão que se dá entre a estereotipação e a similaridade torna perigosa a exposição exagerada - que beira à carência. Tornam susceptíveis as moças, previsíveis os rapazes, premeditados demais os eventos e promulgados os relacionamentos.

 Antes de hipotecar nosso futuro, convém pensar conjuntamente num destino comum, sem a ideia ilusória de que estar no “ranking” dos mais “clicados” da semana fará alguma diferença considerável na sua, ou na vida de qualquer outra pessoa. Poupe-se da exposição.

 Vista-se.

Sarah Nadim de Lazari



Alfândega da Alma


Um depósito para o meu “eu” tem que ser algo razoavelmente grande. Não o suficiente pra caber as coisas descartáveis que carrego comigo, mas compacto a ponto de confortar muito bem minhas ideologias. Ah... essas ocupam um lugar privilegiado nesse recém nomeado “alfândega da alma”.

Tem de haver reservado um cantinho para as minhas saudades. Essas eu vou levar comigo enquanto não saná-las (ainda que renove seu “prazo de validade” com certa periodicidade).  Esquecê-las é só uma questão de priorizar aquilo que mereço armazenar. Tenho um disco rígido grande o suficiente pra me lembrar de quem, hora ou outra, fez parte de uma dessas benesses que o destino me proporcionou.

O caráter há de ser guardado  no espaço em que colocarei minha família. Coisas que soerguem-se juntas, permanecem unidas até o fim. Lá em casa sempre priorizaram o bom caráter, e pra guardá-lo sem os seus, prefiro mantê-lo como utopias do que sou. Ou fui.

Já meus amores, vou preferir embrulhar bem em papel-bolha. Protegê-los do tempo, do desgaste, do desamor, da traição e da covardia é essencial. Que não haja contato algum com a desesperança, muito menos com o saudosismo dos outros. Não os deixe entrar em contato com o gostinho da perdição, nem com qualquer rastro de desinteresse que estiver por perto.

Coloque de qualquer jeito aí nesse meio o bom humor, fazendo com que tudo esteja em contato com ele, e não se esqueça de  fazer dos sorrisos parte fundamental da fé. É que quando a gente ri, contamina-se de esperanças e propaga uma vontade imensa de acreditar que tudo, no fim das contas, vai acabar bem.

Deixe de fora o medo, senão não haverá espaço pra coragem, e essa eu prefiro colocar nas bases do que sou, porque, caso haja um tempestade de desilusão, sei que terei uma forte sustentação.

Exclua dessa lista o comodismo. Não quero que, nesse ínterim, meus pedaços sejam infectados pelo senso comum que, dias desse, fizeram parecer confortável. Quero a aventura de poder contar com o atrevimento. Quero  confiar nas surpresas que prometem as indagações e suas respostas. Quero naufragar nessas ondas de suficiência.

         "Suficiente".

Essa é a palavra.

Guarde de mim tudo aquilo que for suficiente pra me fazer feliz. O resto é o descarte pelo qual o ego se embriagou. 



Sarah Nadim de Lazari
#2011

Azia


Sabe qual a sensação de fracassar?
É a mesma que se sente
Quando o tempo insiste em se manifestar.
É uma angústia amarga e ácida
Que preenche o vazio que outrora
Era ocupado por tristeza e solidão. É substituição.
É  o que difere o sucesso do egoísmo pagão;
É a saudade de um futuro planejado, em ascensão.

Sufoca a alma;
Abafa a voz;
Engole o choro;
Digere o medo;
O fracasso é uma questão de opinião.  

Sabe qual a sensação de se frustrar?
É sempre aquilo que se sente quando os planos não se dão.
É a fé despedaçada por azar ou perdição.
É o fel de uma ressaca ou a dor dessa canção.
É uma cabeçada na parede ou num muro de compaixão.
É fuga. É rendição.

Amarga o ego;
Afoga a esperança;
Espanca a sorte;
Maltrata a fé;
A frustração é uma questão de covardia.

Sabe qual a sensação de decepcionar?
É aquilo que se sente ao derrubar um copo no bar.
É chamar a atenção com suas migalhas no chão.
É um gole de ácido e um arroto em combustão.
É a azia da alma e o silêncio da perdição.
É vergonha. É só vergonha.

Enterra o vigor;
Afaga a coita;
Apaga o êxtase;
Constrange o êxito;
A decepção é uma questão de relevência.

Sarah Nadim de Lazari
#música