Da
janela do meu quarto vejo passar pelo céu, quase todas as noites, um avião.
Resolvi acreditar que era mesmo um avião depois da terceira noite que o vi.
Logo depois de ter confirmado o fato de ele não ser uma nave extraterrestre, nem
uma estrela cadente com cauda verde fluorescente, e, depois de constatar que o
sonido exalado por ele não era nenhuma onda hipnotizante ou infravermelho
cancerígeno, imaginei um desenho.
É,
um desenho desses feitos por criança com giz de cera no pré. O desenho era um
risco vermelho no céu que, beirando à similaridade com as pinceladas do impressionismo de Van Gogh, denotava, num traço, o caminho feito pela aeronave.
Ele se perdia de vista pra direita e pra esquerda, e, toda noite, parecia
engrossar seu calibre. Era um rabisco “encarcado” no céu, que se pautava entre
as estrelas como uma linha do tempo sem pontuações relevantes para serem
citadas.
Fui
mais longe. No momento em que o avião passa pelo meu campo visual, é possível
que, lá dentro, haja alguém lendo um livro pelo qual eu me interessaria, uma
possível aeromoça servindo bebidas amargas o suficiente para amansar as
expectativas da chegada, ou para consolar a dor da partida. Talvez haja um
piloto enjoado de reforçar a linha que traça o caminho feito pelo avião todos
os dias, ou uma senhora sorridente carregada de presentes trazidos de longe pra
entregar aos netos que não vê faz tempo.
Talvez
haja alguém com fome da comida que esfriou em cima da minha escrivaninha.
Talvez lá tenha a comida que eu gostaria de comer a esta hora da noite. Pode
ser que um celular ligado derrube este avião, ou que uma moça desconhecida
encoste a cabeça no ombro de um rapaz “pseudo-intelectual” de óculos, barba e
camisa social. É que, nesse desenho que enxergo, os fatos e as observações são
côngruas demais pra serem grifadas.
Faz
parecer que a vida, é maciça. Que embora o rabisco seja o mesmo, em suas duas
pontas (a chegada e a partida), ele se ramifica feito capilares sanguíneos que
ligar-se-ão a outras retas que cravam histórias lineares entre si. Retas que
mudam de cor, textura, que são curvilíneas ou tracejadas, mas que, hora ou outra,
unem-se ou separam-se pelo mesmo motivo: o acaso.
Da
janela do meu quarto vejo passar pelo céu, quase todas as noites, um avião. A
janela, esse avião e o café frio que me esqueci de tomar enquanto dialogava com
minha câimbra mental, me ensinaram que esse embaraço de linhas, condutas e
vidas, é uma coisa só. É perspectiva.
Uma
espera, ainda que ultrajada de comodismo ou convicção. Quanto tempo até o avião
pousar? Até o taxi chegar? Até eu reencontrar um amor ou até essa espinha
grotesca sumir do meu rosto? Quanto tempo até o Natal ou até a viagem que
programamos para o meio do ano? Quanto tempo até a morte chegar e me livrar de
caminhar por “lugares nenhum”? Quanto tempo até você? Quanto tempo até nós?
Maciça;
prospecta; ingenuamente programada: vida.
Um
avião, uma carroça ou as águas de março... Tudo desemboca num mesmo mar: o fim
da linha.
Sarah Nadim de Lazari
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